Corvo ou urubu
Gosto de olhar o voo dos pássaros. Cedo, as garças, com sua cor branca, tão delicadas, fazem um voo suave, elegante e sincronizado. Partem do Arroio Dilúvio e vão em direção a algum banhado do outro lado da cidade. Se o dia estiver claro, com o sol surgindo, com certeza vamos ouvir uma baderna: são as caturritas e papagaios que, aos pares, fazem a festa. Os papagaios preferem locais bem altos para pousar e chamar o grupo, procurando lugares que lembrem seu antigo habitat. Eles atravessam a cidade em busca de árvores, sementes e, principalmente, água. As caturritas não são tão barulhentas, mas, se elegerem uma palmeira como preferida, vão aterrissar e fazer um bom estrago. Compensa ver toda essa alegria por simples coquinhos.
Há anos passados, não era muito fácil encontrar essas aves nas cidades. Elas habitavam os lugares mais primitivos ou onde havia matas, insetos, frutos, sementes e água. Isso bastava para sobreviverem. Mas alguém não obedeceu à ordem natural e começou um desmatamento desenfreado, pela ganância e ignorância. E essas aves começaram um êxodo em direção à cidade. Hoje, estão perdidas nessa cidade, e seus gritos, antes de alegria, são gritos de socorro.
Nós sentimos que é hora, também, de pedirmos socorro, pois esse festival colorido toma um aspecto com outra tonalidade. Em voos que nos enchiam os olhos de alegria, hoje nos deixam receosos, pois, em nossas janelas e sacadas, o visitante é outro. Com seu voo quase planador, urubus, que alguns chamam de corvos, abrem suas asas de tão grande envergadura que nos deixam com medo.
Por que essas aves estão rodeando nossos prédios? Elas também gostam de frutas e sementes, mas não rejeitam uma sujeira ou uma carniça. Por que, então, essas aves, de gosto tão estranho, estão nos rodeando? Por que elegeram a Avenida Independência? Onde estão as sujeiras, lixos e carniças que elas tanto gostam? Devem estar aqui.
Aqui por perto deve haver locais de reciclagens de lixo, onde as pessoas tiram o ouro (garrafas pet, papelão, latinhas) e deixam a podridão das fraldas descartáveis, restos de comidas e dejetos em qualquer lugar. E não muito longe, temos catadores usando calçadas para separar o lixo. Outros usam o lixo como desculpa para se fixarem nas calçadas. Muitos moradores e comerciantes cooperam com essa situação, deixando seus resíduos nas calçadas, escorrendo líquido fétido, resultado de restos mal embalados.
Hoje, essas aves estão em nossas janelas e sacadas. E amanhã? Descerão, se continuar esse desleixo, e, como as pombas que muitos alimentavam (hoje se sabe que carregam com elas doenças), mostrarão a que vieram. Lembrem-se, tem um ditado que diz: “não alimente corvos, pois um dia ele vai te comer os olhos…”